Além da Máscara: O Diálogo entre Fé, Moral e o Livre-Pensar

Além da Máscara: O Diálogo, num debate intelectual entre Jorge Pinho e Ruy Marcelo

Por Jorge Henrique de Freitas Pinho*

Dedicatória:

A Ruy Marcelo Alencar de Mendonça, pelo olhar generoso, a escuta filosófica e a coragem de dialogar com respeito e profundidade. E a todos os Procuradores do Estado que tive a honra de recepcionar na PGE/AM.

Este texto é também um tributo à memória de Jayme Roberto Cabral Índio de Maués e Vicente Mendonça Junior, que tornaram possível a minha posse, e a Flávio Cordeiro Antony, que me saudou naquele instante marcante.

A cada um, um gesto, um legado e um lugar na história da minha vida pública.

  1. Introdução: Quando o pensamento encontra o reencontro

A filosofia se fortalece não quando impomos uma tese, mas quando somos provocados a pensar mais fundo por aqueles que nos leem com alma e atenção. Foi exatamente isso que aconteceu após a publicação do artigo Entre a Máscara e o Abismo. O texto gerou diálogos importantes, mas um deles, em especial, merece ser partilhado — pelo conteúdo, pela elegância do espírito e pela amizade que o sustenta: o comentário de Ruy Marcelo Alencar de Mendonça.

Ruy não apenas leu, mas escutou o texto. E ao escutá-lo, ofereceu um contraponto nobre, que em vez de opor, amplia. Sua reflexão parte de uma dúvida honesta: estaria o vídeo criticado no artigo demonizando a moral em si ou apenas a fé cega? E os pensadores citados, como Nietzsche e Freud, estariam sendo retratados como negadores absolutos dos valores morais ou como legítimos transgressores de paradigmas?

Essa pergunta não só é pertinente — é essencial. Até porque o vídeo em questão, que assisti ao lado do meu filho e de um amigo, não apenas menciona personagens fictícios como Tony Montana (Scarface) e Walter White (Breaking Bad), mas os apresenta como símbolos de uma autenticidade libertadora, acima de qualquer juízo moral. Embora essas obras de ficção explorem figuras complexas, elas ainda oferecem ao público a possibilidade do julgamento ético. O problema maior está no discurso que acompanha essas imagens no vídeo — um discurso que vai além da representação artística e assume um tom filosófico perigoso.

Em vez de questionar com seriedade os limites da moral ou da fé, o vídeo romantiza a figura do anti-herói como se ele fosse o único capaz de libertar o ser humano da hipocrisia, da religião e da tradição. O que poderia ser uma crítica legítima a moralismo vazio converte-se, então, em apologia velada à dissolução de qualquer critério ético, usando para isso trechos seletivos de autores como Nietzsche e Freud, costurados com sofismas e frases de efeito. E isso é especialmente nocivo quando apresentado com tom professoral e uma falsa aura de profundidade reflexiva.

É por isso que este artigo se constrói como uma continuidade dialógica, como se fosse uma nova dobra no tecido da reflexão anterior. Não se trata agora de reafirmar o que já foi dito, mas de iluminar o que não havia sido ainda suficientemente explorado.

E para isso, nada melhor do que ouvir o próprio Ruy:

  1. Comentário de Ruy Marcelo Alencar de Mendonça

Caro amigo Jorge Pinho,

Não sei ao certo se assisti ao documentário por ti referido na tua alentada crônica semanal. Mas de pronto fiquei instigado a refletir a respeito das tuas considerações, tanto mais pelo nobre propósito revelado, de eliminar falácias perniciosas às novas gerações.

Ocorreu-me a dúvida sobre o significado atribuído no vídeo a anti-heróis e transgressores. Se a mensagem central seria de crítica à sujeição a valores ético-morais ou à fé cega no campo religioso. Porque os pensadores citados me parecem mais transgressores do paradigma intelectual e religioso de seu tempo que negadores absolutos dos valores morais. Por não ter comprometimento subalterno com certas crenças no campo científico e religioso galgaram o mérito da coragem de romper com o pensamento socialmente predominante, o que em nada depõe — por si só — contra o espírito filosófico e ético, necessariamente de livre-pensar, sem peias de dogmas morais impostos pela fé cega.

Como sabemos, existem diferentes graus ou concepções de niilismo, inclusive aquele definido por Turguêniev, no sentido de que “um niilista é um homem que não se curva ante qualquer autoridade nem aceita nenhum princípio sem exame, independentemente do respeito que esse princípio envolva.”

Não defendo com isso o niilismo, mas, assim como o amigo, o livre-pensar filosófico. Sem prejuízo à metafísica e à moral. Não obstante, tenho que o casamento entre o valor moral religioso e o pensamento filósofo é possível, pela lógica da fé raciocinada, adotada pela Filosofia Espírita, dentre outras.

Seja como for, foste muito feliz ao recusar a demonização da moral e da fé e, nesse ponto, estamos inteiramente de acordo.

Abraço de seu amigo e leitor, que te estima,

Ruy Marcelo

 

  1. Resposta: A coragem da dúvida e a fidelidade ao sentido

Querido Ruy Marcelo,

Teu comentário é, por si só, um ensaio. Um desses raros textos que não apenas respondem, mas convidam a seguir pensando. E o fazem com a elegância do espírito que questiona sem agredir, e com a generosidade de quem sabe que o saber só floresce quando cultivado em solo fértil de respeito mútuo.

Tuas palavras me levaram de volta ao cerne do que tento, com minhas limitações, expressar quando escrevo: que a filosofia verdadeira não teme a dúvida, mas também não se embriaga com ela; não recusa a crítica, mas também não glamouriza a destruição.

E tens razão: há, de fato, uma distinção essencial entre os anti-heróis contemporâneos — frequentemente convertidos em arquétipos de rebeldia niilista, esvaziada de sentido — e os pensadores que ousaram, como tu bem disseste, romper com paradigmas intelectuais e religiosos por fidelidade à verdade, e não por vaidade transgressora.

Minha crítica, como busquei deixar claro no artigo, não se dirige a Nietzsche ou Freud — e muito menos a Darwin ou Galileu. O que me inquieta é o uso cínico, sofismático e falacioso de suas ideias em discursos que os transformam em bandeiras para relativizar tudo, inclusive o próprio valor da busca pelo sentido. Quando a transgressão vira pose e a dúvida se converte em fetiche retórico, já não estamos diante da filosofia — mas de sua caricatura.

E isso, Ruy, é o que mais me preocupa: não o livre-pensar, mas o esvaziamento do pensar; não a ruptura necessária, mas a celebração indiscriminada do abismo. E me aflige ver jovens sendo atraídos por discursos que confundem profundidade com escuridão, e autenticidade com cinismo.

A citação que trouxeste de Turguêniev é preciosa. Um niilista, nesse sentido, é alguém que exige exame racional antes de aceitar qualquer princípio. Isso é louvável. Mas quando o exame se torna recusa sistemática de todo valor, e a dúvida se torna um fim em si mesma, já não estamos mais falando de liberdade — mas de paralisia. O verdadeiro livre-pensar, como bem disseste, não exclui a metafísica, nem a moral — ao contrário, ele as purifica, as examina, e as reconstrói com honestidade.

E nisso estamos, como disseste, plenamente de acordo: a fé raciocinada é uma das pontes mais belas que a filosofia pode construir entre razão e transcendência. A tradição espírita a que te referes oferece um modelo digno de nota — assim como tantas outras que recusam o dogma cego, mas também o vazio cínico. A fé que pensa é também a razão que sente.

Esse nosso diálogo, Ruy, é tudo o que o artigo Entre a Máscara e o Abismo esperava provocar: uma reflexão que não teme a complexidade, que respeita as diferenças e que reencontra o sentido onde muitos veem apenas ruptura.

Ao escrever este texto, senti que não estava apenas respondendo a um amigo — mas vivendo, contigo, uma das formas mais puras de filosofia: o diálogo sincero, aquele que eleva os dois interlocutores sem que nenhum precise vencer.

Sigamos, meu irmão, nesse espírito. Que a dúvida nunca nos paralise, que a crítica nunca nos endureça, e que a fé — pensada, sentida e vivida — continue sendo luz no caminho da razão.

  1. Conclusão: Fé e filosofia no espelho da dúvida

O diálogo com Ruy Marcelo não apenas ampliou a reflexão iniciada no artigo anterior — ele a enraizou em algo maior: a consciência de que a verdadeira filosofia não é inimiga da fé, mas sua interlocutora mais exigente e, por isso mesmo, mais leal.

A dúvida, quando nasce da honestidade intelectual, pode ser semente de fé mais profunda. Quando nasce da vaidade, é apenas ruído que se disfarça de crítica. E foi justamente essa distinção que o comentário de Ruy ajudou a trazer à tona com clareza: a diferença entre o niilismo corrosivo e o livre-pensar comprometido com a verdade.

Foi também Ruy quem generosamente me recomendou a leitura do livro Os Conflitos de Fé dos Filósofos, de Jonatas F. Cunha — obra que aprofunda essa mesma tensão com erudição e sensibilidade. Lá encontramos pensadores como Pascal, Kierkegaard, Descartes, Spinoza, Nietzsche e até Bertrand Russell sendo confrontados com suas próprias contradições internas entre razão e fé, entre dúvida e necessidade de sentido. Não como personagens simplificados, mas como homens em luta consigo mesmos, o que os torna ainda mais humanos — e mais próximos de nós.

Esse livro me ajudou a perceber que não há verdadeiro filósofo que não tenha, em algum momento, dialogado com o mistério. E mesmo aqueles que negaram Deus o fizeram com a seriedade de quem sabia que sua negação não era indiferença, mas conflito. E onde há conflito, há ainda um campo fértil para o sentido.

Onde há conflito, há o necessário atrito que desperta o intelecto — como tão bem ensina Lúcia Helena Galvão. O atrito é incômodo, mas é também iluminação. É da fricção entre certezas e dúvidas que nasce o calor que aquece a consciência. O pensar verdadeiro exige esse embate — não de destruição, mas de clarificação.

É justamente esse percurso que podemos compreender simbolicamente à luz da tradição alquímica, como um processo de transformação espiritual e material:

  • Primeiro, a obra em preto (nigredo): o mergulho na dúvida, a decomposição das certezas, o encontro com a sombra interior. É a fase da confusão fecunda, onde tudo parece se dissolver — inclusive o eu que julgávamos ser.
  • Depois, a obra em branco (albedo): o momento da purificação, da clareza que nasce do reconhecimento dos limites, da abertura à verdade e à transcendência. É o despertar da luz interior após a noite da alma.
  • Por fim, a obra em vermelho (rubedo): a síntese viva, o renascimento espiritual que une razão e fé, consciência e amor, crítica e sentido. É a maturidade do espírito, agora capaz de agir com sabedoria sem perder a humanidade.

E é quando essas três etapas se encontram em harmonia que surge a imagem mais preciosa da alquimia: a cauda pavonis — o esplendor multicolorido do pavão, símbolo da iluminação que nasce da integração dos opostos. A cauda do pavão não nega as sombras; ela as transfigura.

Que esse diálogo com Ruy Marcelo inspire outros. Que pensemos juntos, não para vencermos uns aos outros, mas para vencermos, juntos, o vazio existencial — esse, que me parece um dos males mais profundos que podem afligir o ser humano em qualquer época, mas especialmente nestes tempos de liquidez de valores.

E que sigamos assim: entre a dúvida que ilumina e a fé que sustenta, trilhando, com coragem e lucidez, a grande obra da alma.

  1. Epílogo espiritual: quando a fé e a razão se reencontram

Em perfeita harmonia com o espírito deste artigo, partilho um trecho de Allan Kardec — enviado generosamente por Ruy Marcelo — que exprime com rara lucidez o valor da fé raciocinada. Não uma fé imposta ou dogmática, mas aquela que se conquista pela busca sincera, pelo exame racional e pela abertura do coração ao que transcende. Eis o que diz Kardec, em O Evangelho Segundo o Espiritismo:

“A fé necessita de uma base, e essa base é a perfeita compreensão daquilo em que se deve crer. Para crer, não basta ver, é necessário sobretudo compreender. A fé cega não é mais deste século. É precisamente o dogma da fé cega que hoje em dia produz o maior número de incrédulos, porque ela quer impor-se, exigindo a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: a que se constitui do raciocínio e do livre-arbítrio. (…)

A fé raciocinada, que se apoia nos fatos e na lógica, não deixa nenhuma obscuridade: crê-se, porque se tem a certeza, e só se está certo quando se compreendeu. Eis porque ela não se dobra: porque só é inabalável a fé que pode enfrentar a razão face a face, em todas as épocas da Humanidade.”

Essas palavras selam com profundidade o espírito deste artigo: a fé verdadeira não teme a razão — ela a convida ao diálogo. E a razão, quando é honesta, não recusa o mistério — ela o contempla em silêncio, e aprende com ele para se tornar cada vez mais elevada.

Jorge Pinho

Jorge Pinho

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