Uma Conversa Inacabada com Jorge Pinho, a Ironia de um Reencontro Ancestral

Uma Conversa Inacabada

Uma Conversa Inacabada é a crítica literária de Lourival Holanda, especialista pernambucano consagrado, sobre Jorge Pinho (foto)

*Por Lourival Holanda

A vida tem dessas ironias que só mais tarde reconhecemos como destino. Conheci Jorge Pinho há décadas, num tempo em que as palavras eram para nós um campo de batalha e um refúgio. Eu, mais velho, já inclinado à contemplação e ao ritmo pausado da análise; ele, impetuoso, afiado, com o olhar de quem quer desmascarar as falácias do mundo. Diferentes na forma, convergíamos no essencial: a crença inabalável no poder da escrita como espelho da inteligência e instrumento da liberdade.

Mas a vida separa, como quem reorganiza personagens em um novo ato. Jorge saiu para crescer, como quem sai para comprar pão na esquina. Lembro bem: jovem, inquieto e promissor, já com um pé na Inglaterra, para aprimorar o inglês. Mas sua trajetória não se limitou à busca pelo domínio de línguas estrangeiras; aos 21 anos, foi aprovado no concorrido concurso para Procurador do Estado do Amazonas, tornando-se, desde cedo, um nome a ser observado.

A carreira foi meteórica, mas não acidental. Jorge não chegou onde chegou por favores, mas por talento e obstinação. Chefiou várias Procuradorias Especializadas da PGE, foi Subsecretário de Estado Chefe da Casa Civil e Subprocurador-Geral do Estado, até ocupar, por quatro mandatos distintos, o mais alto posto da advocacia pública estadual: Procurador-Geral do Estado, duas vezes sob Amazonino Mendes, uma sob Eduardo Braga e outra no primeiro governo de Wilson Lima.
O tempo, esse conspirador, tratou de nos reaproximar, mas Jorge não voltou o mesmo — e quem volta, afinal?

O jovem inquisitivo de outrora, aquele que interpelava o mundo sem cerimônia, transformou-se num homem para quem as respostas importam tanto quanto as perguntas. Ele aprendeu no tabuleiro do poder a desconfiar dos discursos, a ler nas entrelinhas, a escavar significados. Mas não perdeu o que nele sempre foi essencial: a recusa em aceitar a estupidez disfarçada de verdade.

Jorge Pinho não escreve sempre para agradar. Muitas vezes seu estilo não corteja o leitor distraído, tampouco faz concessões aos dogmas de qualquer lado. Ele desmonta falácias, não com paciência acadêmica, mas com o ímpeto de quem sabe que há urgências que não permitem a morosidade dos salões universitários. Ele desmascara, corrige, ironiza — e, quando necessário, golpeia. A palavra, para ele, não é apenas argumento, mas espada.

Mas Jorge não é só La Boétie em fúria contra a servidão voluntária; há nele, também, o espírito do Montaigne que o influencia, aquele que percorre as sutilezas da alma humana com o mesmo rigor com que examina as estruturas do poder. Seu amor pela filosofia atravessa escolas e tradições — do Budismo à Cabala Judaica, passando pelos filósofos clássicos e contemporâneos de sua predileção. Ele compreende que a crítica do mundo não pode ser apenas uma denúncia; precisa ser também um mergulho no humano, naquilo que nos move, nos ilude e nos redime. Ele escreve como quem busca não apenas desmontar narrativas falsas, mas compreender a verdade onde quer que ela se esconda — e, talvez, ajudar o leitor a encontrá-la.

Não surpreende que se veja em La Boétie. É a justa morada para sua indignação meticulosamente articulada, para a recusa em aceitar a servidão voluntária que se disfarça de consenso. Seu olhar percorre o cenário político com a precisão de quem conhece seus bastidores, mas sem se render ao cinismo de quem se habitua a ele.

Eu, se me permitem a ousadia da analogia, estaria mais próximo de Montaigne. Não que me falte a inquietação — ela existe, mas foi domesticada pela experiência. Prefiro a observação ao embate direto, a sutileza ao golpe frontal. Se Jorge desbrava os terrenos do poder e da ideologia, eu caminho pelas filigranas da linguagem, atento ao que os textos dizem e, sobretudo, ao que tentam esconder.

Se somos reencarnações de La Boétie e Montaigne, como Jorge insiste em dizer? Não sei. Mas há algo nessa ideia que me agrada: a de que certas conversas não terminam, apenas mudam de cenário. Se nos reencontramos agora, é porque o pensamento tem sua própria lógica — e talvez nosso destino seja, mais uma vez, esse: refletir, questionar, escrever.
E, quem sabe, deixar registrado um legado que resista ao tempo.

 

O Papel da Crítica Literária na Atualidade

Todavia, no atual momento a crise acu(s)a a leitura cuidadosa, a coisa parecida com o fracasso midiático: o público, na visão de muitos, não quer ser confrontado com esforço. (Daí a enorme facilidade com que correm as besteiras agradáveis, nas redes: elas divertem, contentam o leitor pouco ou nada exigente). Assim, a inteligência crítica de Jorge Pinho parece ser contrapondo feliz: é, a um tempo, exigente e humorada — esse sal do contemporâneo. No âmbito universitário, jurídico ou literário, tal exigência se dogmatizou, ficou relegada a um gueto aparentado à pesquisa; se hipertrofiou, se encapsulou. Propositadamente distante de qualquer entusiasmo teórico ou mesmo crítico, ela faz os mesmos caminhos, autores e métodos: os textos acadêmicos nem sempre são palatáveis; o grande público os ignora. Nos depósitos, felizmente agora virtuais, pululam teses e teses quase sempre em torno do mesmo; ela resiste ao novo porque, quase sempre, lhes falta o cuidado com a forma, a clareza – essa cortesia de quem escreve; falta a fortuna crítica que economiza risco dando garantia. Enfim, a crítica acadêmica frequenta mais facilmente o que já está instituído: a universidade é uma instituição, portanto… ela conserva, mais que inova.

O cuidado, o desvelo com a linguagem, nas mídias sociais e fora, tem grande dependência do mercado livreiro, dos grupos de marketing, que cuidam de apresentar um produto vendável. Claro: evitam textos inovadores, dos que desnorteiam desde a primeira abordagem; e que exigiram releitura: a imprensa tem pressa. Não há como dar conta, numa resenha rápida, circunstancial, da complexidade de um texto. Sobretudo se foge à classificação seguradora.

Portanto, a função crítica é, sobremaneira hoje, um exercício ingrato. Como apreender, com um conceitual desgastado, as aventuras da narrativa experimental contemporânea? Como confrontar a memória do aprendido com a urgência de uma solicitação premente: o texto pode pedir uma reflexão teórica que não vai sem riscos. Cabe ao crítico, portanto, a coragem de ficar entre a amnésia e a aventura interpretativa. Alguma amnésia é necessária para receber o novo; e ao risco, some-se o rigor, para evitar o delírio interpretativo.

A crítica criativa, naturalmente feita por quem ama a linguagem, feito Jorge Pinho, é uma reflexão centrada, primeiro sobre a referencialidade explicitada, a narrativa; depois – mas sobretudo – sobre a linguagem que pode constituir impacto, ou deixá-la desaparecer no sumidouro das produções que se sucedem.

Se o texto ultrapassa esse patamar, então o trabalho crítico pode se tornar um empreendimento reflexivo, analítico, num modo inerente às coisas da linguagem, do ofício. Novalis pedia que só se falasse de poesia poeticamente: portanto, o desafio à crítica é ser bela como um teorema.

A crítica, uma forma de atenção, para dizer com Frank Kermode, nasce da sedução de uma linguagem; e volta a ela, como releitura argumentada com intenção de estender uma ponte com o leitor. Uma ponte onde também se paga um preço: o do esforço de atenção à matéria verbal, advinda de impulsos e abandonos, limites e matreirices de quem escreve e codifica até coisas que ignora.

É preciso desconfiar de cada frase de Guimarães Rosa – tudo faz parte de seu jogo. É preciso estar atento à imprevisível expressão do desejo no universo agreste de Euclides da Cunha vendo a volúpia de vida nos arbustos mínimos que crescem na umidade de entre pedras. É bom dobrar a atenção com a poética de Bandeira: — Quando por mais assegurada/ contra os golpes de Amor me tinha/ eis que irrompes por mim deiscente…
— Cântico! Púrpura! Alvorada!
— Eis que me entras profundamente
Como um deus em sua morada!
— Como a espada em sua bainha. O diálogo lírico reescreve O cântico dos cânticos com modernidade surpreendente.

Tal atenção permite mensurar mais objetivamente os recursos usados pelo autor e assim avaliar o bem-sucedido de um texto. É assim que o texto deixa ver seu próprio – e primeiro – passo crítico. A função do leitor crítico é escutar o tom, o ritmo cadenciado de um poema, de uma prosa. O texto literário é um exercício de dramaturgia sutil; o que está em cena acena ao leitor atento. E a crítica pode ser essa conversa continuada, de que falava Todorov ultimamente.

Assim, como os novos tempos, com outros critérios se desfizeram dos balizamentos teóricos que travavam os caminhos de novas buscas, o leitor crítico literário continua lendo: atentamente, com rigor e vigor de quem ama a matéria verbal. Podem até parecer menores na escala de comunicação midiológica; mas, é como com os insetos: pequenos, seja, mas fundamentais para a fecundação que vai das flores aos frutos. É bom zelar para que não sejam, ambos, ameaçados de extinção.

 

Conclusão

Jorge Pinho, em sua escrita, não apenas confronta a realidade, mas convida à reflexão. Sua crítica não se fecha em um dogmatismo árido, nem se rende à facilidade das fórmulas prontas. Ele desafia, questiona, desnuda a linguagem e seus jogos ocultos, mas também compreende que, no cerne do discurso, há sempre algo mais sutil do que a mera argumentação: há o humano, suas contradições, suas ilusões e sua busca.

Se há um legado que essa conversa inacabada pode deixar, talvez seja este: a escrita, quando verdadeira, não se limita a registrar o mundo tal como o vemos, mas o provoca, o recria, o interroga. No embate entre a crítica rigorosa e a abertura ao novo, Jorge encontra o seu próprio caminho, recusando tanto a servidão do pensamento quanto a armadilha da negação vazia.

E se o tempo nos reconduziu ao diálogo, quem sabe possamos, mais uma vez, trabalhar como La Boétie e Montaigne? Um, inquieto e impetuoso, abrindo clareiras na densa floresta dos discursos, desmascarando as falácias e rompendo com as ilusões da servidão intelectual. O outro, atento ao subtexto, ao ritmo e ao jogo da linguagem, garantindo que a espada do pensamento esteja sempre bem afiada.

Que continuemos, pois, escrevendo – e nos desafiando. Pois enquanto houver palavra, haverá pensamento. E enquanto houver pensamento, haverá liberdade.

Lourival Holanda

Lourival Holanda

* O autor é professor titular da Universidade Federal de Pernambuco. Presidente da Academia Perna...

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